O processo penal à la Curitiba: é hipocrisia reclamar de vazamento ilegal

OPINIÃO

Por Mathaus Agacci

No dia 30 de maio, escrevi artigo aqui na ConJur intitulado “O uso distorcido da teoria do domínio do fato em decisões típicas de lawfare[1], oportunidade em que teci diversas críticas quanto à condução das investigações e processos da famigerada operação “lava jato”.

Não é segredo para ninguém que no último domingo (9/6) mensagens trocadas entre procuradores da República e o ex-juiz federal Sergio Moro, atual ministro da Justiça, foram escrachadas no jornal The Intercept Brasil[2]trazendo à tona relação absolutamente promíscua entre acusação e julgador, em irrefragável inversão dos valores trazidos pela Carta Magna.

Algumas pessoas louvavam o ex-juiz federal Sergio Moro, como se verdadeiro herói fosse, combatente do crime e da criminalidade, sem nenhuma parcialidade em seus julgamentos.

Esqueceram-se, apenas, que juiz não é combatente da criminalidade, que juiz não é símbolo nacional de combate à corrupção, que juiz não é agente de segurança pública. Juiz, assim como todos nós, é escravo da Constituição Federal, deve respeitar o princípio da legalidade, emitindo somente provimentos jurisdicionais com supedâneo legal. Juiz deve ser escravo das formalidades processuais, que são, inegavelmente, as armas do cidadão contra as arbitrariedades estatais.

Os criminalistas, principalmente, teciam diversas críticas quanto à atuação imparcial do ex-juiz federal Sergio Moro na operação “lava jato”. Quem atuou em audiências por ele presididas sabe que descumpria, em verdadeiro ato abusivo e absurdo, o disposto no artigo 212 do Código de Processo Penal, por exemplo.

Gerou-se, na prática, um processo penal à la Curitiba, aplicável na “lava jato”. Um processo penal que não cumpre regras de competência; um processo penal que não cumpre os ditames constitucionais; um processo penal que não cumpre o sistema acusatório; um processo penal que não admite o cross examination; um processo penal em que o juiz não é imparcial. Processos que, invariavelmente, são nulos. E são nulos por culpa exclusiva de quem não seguiu as formalidades da lei.

Com o vazamento das mensagens que descrevem a mais promíscua relação entre acusação e julgador, tudo isso se confirmou, de um jeito ou de outro. Viu-se que a capa de herói, que Moro aparentava vestir, era falsa. Algo que já dizíamos há muito.

Em qualquer outra nação democrática se chegaria na simples conclusão de que um ex-juiz federal que condenou o principal rival político do atual presidente, inviabilizando sua candidatura, e que depois aceita cargo no governo do presidente eleito agiu, sim, com imparcialidade. É axiomático. Só não vê quem não quer.

Salta aos olhos que pessoas defendam ter ele agido com imparcialidade; estão, deliberadamente, cegas. Não querem admitir uma “derrota de percepção”, quando, em realidade, derrotado está todo o povo brasileiro, pelos efeitos que tais atos, se forem comprovados, podem gerar e já geraram para muitos.

É como sempre digo: o ser humano, pela maldade intrínseca, quando o seu semelhante está sendo acusado em um processo criminal — sobretudo quando o acusado tem poder, status, dinheiro ou qualquer outra coisa que gere inveja no aludido ser humano —, age com hipocrisia, não querendo saber se as garantias constitucionais e os ritos processuais estão sendo seguidos, quer a condenação a qualquer custo. No entanto, a vida é cheia de revés e, em um malfadado dia, o tal ser humano ou alguém por ele querido sofre uma acusação ou vilipendiação de direitos, aí este mesmo ser, com toda a hipocrisia que lhe assiste, intenta recorrer ao devido processo legal e às garantias legais que tanto reclamou e foi contrário. Esse é o retrato do Brasil atualmente.

Os áudios vazados pelo The Intercept Brasil, caso comprovados, só demonstram que, a pretexto de combater a criminalidade, alguns agentes públicos esqueceram-se, premeditadamente, dos mais básicos preceitos constitucionais e legais, que qualquer estudante pode lembrar facilmente, agindo com intenções políticas maquiadas. Temer falar isso ou fechar os olhos é tolice. É tudo que o Brasil não precisa neste delicado momento.

Toda essa vilipendiação de direitos e inversão de valores ocorreu sob os aplausos da população leiga em matéria de processo penal ou que, por intenções subjetivas, preferiu a hipocrisia. Algumas dessas pessoas que aplaudiram e, hoje, continuam aplaudindo a imparcialidade de Sergio Moro, sob o vergonhoso argumento de que os “fins justificam os meios”, vestiram, durante a perseguição política a alguns cidadãos, a máscara dos bons samaritanos, dos combatentes do crime. Quando o “jogo vira” e descobre-se que aqueles por eles defendidos agiram ilegalmente, vestem a máscara da hipocrisia e suportam qualquer tipo de ilegalidade em inconcussa inversão de valores.

Mas, é necessário lembrar, a vida, como eu disse anteriormente, é cheia de reveses e, se por um infortúnio do destino, forem acusados aqueles que hoje aplaudem a imparcialidade sob o manto de que “os fins justificam os meios”, irão correndo apoiar-se no devido processo legal e demais garantias constitucionais. Afinal, com meu semelhante, tudo bem, mas, comigo, nunca. A Bíblia já dizia:

Mateus 7:1-5
“Não julguem, para que vocês não sejam julgados. 2 Pois da mesma forma que julgarem, vocês serão julgados; e a medida que usarem, também será usada para medir vocês”.

Sobre todo esse processo penal à la Curitiba, percebe-se, também, que o tiro saiu pela culatra. O ano é 2016, procuradores do MPF propuseram as chamadas “10 medidas contra a corrupção”[3] e, dentre tais medidas, sugeriam o aproveitamento da prova ilícita quando estas servirem para refutar álibi, demonstrarem falsidade ou inidoneidade de prova por ela produzida ou fizerem contraprova de fato inverídico deduzido pela defesa.

Diante do vazamento das mensagens, em total dissonância do que alguns procuradores da República defendiam em 2016, nas citadas “10 medidas contra a corrupção”, a Associação Nacional dos Procuradores da República declarou[4] que “os dados utilizados pela reportagem, se confirmada a autenticidade, foram obtidos de forma criminosa, violando os postulados do estado democrático de direito” e que, por isso, “os efeitos jurídicos deles são completamente nulos”.

Ironia do destino ou hipocrisia total? Lembre-se, não sou eu quem está falando; em 2016, tanto Dallagnol[5] quanto Moro[6] defenderam a possibilidade do uso da prova ilícita. Novamente, diga-se, processo penal à la Curitiba. Para o inimigo, vale tudo; para mim, nada.

Fico abismado de me pegar escrevendo sobre um tema que é tão básico, afinal, princípios constitucionais nos são apresentados no início de qualquer doutrina. Agora, com o vazamento, está tudo escrachado, está documentado, escrito, basta ler. As dúvidas que se tinha quanto ao lawfare, quanto à imparcialidade, quanto ao descumprimento de garantias fundamentais, quanto aos atos arbitrários, se comprovadas forem as mensagens, ficam evidentes.

Sergio Moro, durante entrevista com Pedro Bial, justificou o injustificável, disse que ninguém está acima da lei e, no tocante ao vazamento ilegal que fez de áudio de um dos condenados na “lava jato”, sustentou que o ponto não era o vazamento, mas, sim, seu conteúdo atentatório à Justiça.

Nesse sentido, o extremista poderia pensar, inclusive, que se pode iniciar uma investigação com base em denúncias anônimas, porque o que interessa é “prender o bandido”, novamente, os “fins justificam os meios”.

Destarte, seria, no mínimo, hipocrisia de ambos (Moro e Dallagnol) reclamar de vazamento ilegal, afinal, trata-se de fatos seríssimos. Se for comprovada a veracidade das mensagens, inclusive, conforme muito bem elencou Antônio Carlos de Almeida Castro, em entrevista, “é necessária uma investigação profunda para saber se havia uma organização criminosa tentando usar a estrutura do Poder Judiciário em proveito próprio e com fins políticos”[7].

O que mais me surpreende de tudo isso não é o conteúdo das mensagens vazadas — apesar de ser bombástico —, mas, sim, a necessidade de tal escrachamento para que diversas pessoas enxergassem a gravidade de atuação do Judiciário pela ótica de que os fins justificam os meios” e a fragilidade, com isso, do Estado Democrático.

Temos que lutar por um país melhor. Temos que lutar por um país mais justo. Temos que lutar por um Judiciário que cumpre a Constituição Federal. Temos que lutar por um Judiciário imparcial.

A luta partidária travestida de luta contra o crime ou a corrupção é uma luta humilhante, vexatória e desonrosa; não seja esse tipo de pessoa.

 é advogado criminalista, sócio do Agacci & Almeida Advocacia.

Revista Consultor Jurídico

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *