Exploração de recursos e falta de cultura preventiva compõem desastre anunciado

Diretor de Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS diz que é preciso melhorar monitoramento, capacitar a população e repensar o uso do solo, inclusive a monocultura.

“Estou muito, muito triste, você não imagina…É uma frustração”. A frase,
em tom de indignação, foi dita por Joel Goldenfum, engenheiro e diretor
do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), ao analisar a trágica situação de seu estado.
Não é para menos. Diante da tragédia que assola o Rio Grande do Sul
desde a semana passada, talvez a pior desta natureza já vista no Brasil,
Goldenfum se recorda do tanto de estudos e alertas já feitos por ele e
muitos outros cientistas e especialistas ao longo de anos.
Ao falar ao Portal Vermelho sobre o tema, ele narra mais um desastre
anunciado, que poderia ter sido, se não totalmente evitado, ao menos
mitigado. Afinal, não é de hoje que se sabe das consequências, para a
vida humana e para o meio ambiente, da máxima exploração dos
recursos naturais promovida pela lógica capitalista, que vem gerando a
crise climática.
Proteladas por anos, as soluções para tornarem as cidades mais
resilientes às chuvas e às secas, entre outros fenômenos climáticos que
podem assolar comunidades inteiras, se tornaram ainda mais urgentes
no período atual.
No Rio Grande do Sul, não faltaram avisos da ciência e da própria
natureza. Eventos mais recentes do que a histórica enchente de 1941 —
superada pela de agora —, como as inundações de setembro e
novembro de 2023 de um lado, e as estiagens que duraram três anos,
finalizadas no ano passado poucos meses antes das tempestades do
segundo semestre, já deveriam ter servido de alerta. Mas, pouco mudou.
E veio maio de 2024.
Diante da marcha da crise climática e como forma de evitar novas
tragédias dessa magnitude, Goldenfum defende medidas como melhorar
o monitoramento das áreas mais sensíveis, capacitar a população e
repensar o uso do solo, sobretudo em locais de risco, assim como criar
uma cultura de prevenção de risco. Ao mesmo tempo, ele defende ser
preciso rever a utilização da monocultura e estimular um uso
ambientalmente mais amigável do solo e das águas. “Para obter lucro
mais rápido, as pessoas super-utilizam os recursos. E isso causa sérios
problemas ambientais”, diz.
Leia abaixo os principais trechos dessa conversa.
A enchente de 1941

“Não temos controle sobre fatores físicos, climáticos, hidrológicos. Então,
a gente precisa trabalhar em outros campos. Nós já tivemos um evento
muito parecido com esse, em 1941. E eu creio que, não por coincidência,
também foi em um ano de El Niño  muito parecido com esse, com
precipitações muito altas. O nível mais alto (do Guaíba) foi alcançado na
mesma época, inclusive — naquele ano, foi no dia 8 de maio,
praticamente no mesmo dia que agora. E era o nosso principal evento
desse tipo. Quando se falava deste assunto, a referência era a enchente
41. Essa de agora a ultrapassou. E não foi surpresa quando a gente
começou a ver a quantidade de chuva”.
Ocupação do solo

Joel Goldenfum. Foto: reprodução
“Mas, temos algumas diferenças em relação a 1941. Uma delas, fácil de
constatar, é o tamanho da população. Naquele ano, Porto Alegre tinha
menos de 280 mil pessoas (hoje, são cerca de 1,3 milhão, segundo o
Censo 2022). As outras cidades atingidas no Vale do Taquari, por
exemplo, eram pequenas. Algumas delas nem eram municípios, mas
parte de outros maiores. Então, realmente isso traz um efeito muito maior

porque o uso e ocupação do solo é diferente e hoje há pessoas em áreas
cadastradas como de risco”.
Mudanças climáticas
“Outra questão inegável é que nós estamos enfrentando mudanças
climáticas. Os estudos que têm sido feitos — inclusive por nós aqui no
Instituto — indicam claramente que, em termos de volumes de água, se
espera uma redução para Norte, Nordeste e até Sudeste do Brasil, mas
um aumento dos volumes médios aqui, no Sul. E se observa uma
tendência ao aumento de frequência e intensidade de eventos extremos.
Então, a mudança climática é um fator importante. Portanto, o que está
acontecendo são problemas decorrentes de ocupação inadequada e das
mudanças climáticas”.
Estudo ainda atual
“Entre 2014 e 2016, realizamos no Centro de Pesquisa e Estudos sobre
Desastres (Ceped, vinculado à UFGRS), um estudo sobre a bacia do rio
Taquari-Antas. Nesse estudo, chegamos a uma série de conclusões. E
nós a resumimos em três termos de referência. Um era a necessidade de
melhoria do monitoramento, tanto de questões meteorológicas quanto de
questões hidrológicas, ou seja, o monitoramento da bacia como um
todo.
O segundo tratava da capacitação, não só para técnicos, mas também
para a população, para a gente poder aprimorar a percepção de risco. As
pessoas, muitas vezes, não sabem que estão em áreas de risco. Elas
não sabem o que fazer quando ocorre um evento como esse. Não
adianta, na última hora, você botar uma sirene se a pessoa não sabe
nem para onde ela deve ir”.
O terceiro produto visava repensar o uso do solo. Era um tema de
referência para a contratação de planos diretores para os municípios
envolvidos, identificando-se que tipo de uso pode ser dado para cada
área. Tem áreas que só podem ter usos que passíveis de conviver com
inundação, porque nada mais é possível.
A orla de Porto Alegre, por exemplo, é um parque linear inundável. Sua
função é ser inundada quando acontece uma cheia para que o Guaíba
tenha um espaço que ele possa utilizar. Claro que em um evento
excepcional como este, a coisa fica mais séria, mas em eventos um
pouco menores, a ideia é justamente essa. Então, o uso com quadras
esportivas ali, em princípio, está correto”.
Uso adequado de áreas de risco

“Se a gente não der um uso adequado, esse tipo de área vai acabar
sendo ocupada para usos inadequados. Daqui a pouco, tu tens uma
ocupação irregular dentro da área, porque a área não foi usada. E o
problema não é o fato de ser irregular em si, o problema é o fato de ser
uma área de risco, destinada a abrigar o excesso da água. A questão,
portanto, envolve fatores climáticos, meteorológicos, e de planejamento
de uso do solo, e mais importante, da criação de uma cultura de
prevenção de risco”.
Indignação
“Apesar desse estudo ter sido feito em 2014- 2016, nada mudou de lá
para cá. O estudo foi financiado pela Secretaria de Defesa Civil Nacional,
com verba pública, por instituição pública — no caso da Universidade
Federal do RS —, e entregue para o governo na época,. Só que não foi
só aqui, foi feito em vários locais do Brasil. E pelo que eu tenho
conhecimento, não se tomou maiores medidas, apesar dos estudos
indicarem essa necessidade (…). Talvez você esteja notando, pelo meu
tom de voz, a minha indignação. A gente faz todo um estudo para depois
ser guardado dentro de uma sala”.
Manejo do solo e da água x monocultura
“A questão toda é que nós temos uma cultura — que vem há muito
tempo, de vários governos e que alguns incentivam mais, outros menos
— de exploração máxima dos recursos, no caso, do solo e da água. E o
que a gente vê com isso é que, para obter lucros mais rápidos, as
pessoas super-utilizam esses recursos. E isso causa sérios  problemas
ambientais”.
A monocultura acaba causando uma série de problemas. Existem
estudos mostrando que o  bioma Pampa  já está em risco de extinção em
função das culturas locais, principalmente de soja e arroz, que são
dominantes na área. E isso é um problema grave.
Existem outros estudos que indicam que, se você fizer um manejo de
água e solo mais consciente, num prazo de alguns anos, você consegue
recuperar o investimento inicial e passar a ter lucro. Se você manejou
corretamente a água e o solo, você fica menos vulnerável a eventos
climáticos extremos”.
Quando a gente pensa em desastre, aqui no Sul, a gente quase que só
pensa em inundação, mas a seca é um desastre tão grande, ou pior, do
que a inundação. Aqui nós estamos vivendo ciclos de seca e ciclos de
inundação. Se nós fizermos pequenos espaços com capacidade de
armazenar água, de melhorar o plantio para reduzir o grau de perda de
solo, pode ser que se gaste no início, mas depois a gente vai ter maior

fixação do carbono do solo, nós vamos ter menor necessidade de
nutrientes e de defensivos agrícolas”.
Financiar para melhorar
“Mas, se você fala com, digamos, um agricultor médio aqui no Sul, ele vai
dizer ‘eu não posso esperar seis anos, eu tenho que lucrar no primeiro
ano’. Então, existe essa cultura do lucro imediato. E isso talvez seja
verdade. Por isso, alguns programas de financiamento deveriam ser
voltados para prazos mais longos, para que os produtores possam fazer
sistemas mais amigáveis ao meio ambiente.
E imagina o seguinte: se você faz um sistema desses, por exemplo, em
lavouras de soja — que é vendida para o exterior como commodity, como
um produto bruto — e você tem esse produto sendo feito com técnicas
menos agressivas ao meio ambiente e rotular o seu produto como
ambientalmente amigável, você pode agregar valor a ele, vender mais
caro”.
5 etapas para lidar com desastres
“Outra questão importante quando a gente pensa em desastre é levar em
consideração cinco etapas: prevenção, mitigação, preparação, resposta
e recuperação.
A prevenção é o conjunto de ações destinadas a reduzir a ocorrência e a
densidade de desastres. A mitigação visa a limitar os danos. A
preparação, basicamente, constitui  medidas tomadas para obter uma
resposta eficaz em desastres, como planos de contingência e missões de
alerta, por exemplo. Depois, vem a resposta, que são ações de socorro,
e a recuperação, onde a gente trata de reestabelecer a normalidade da
comunidade afetada, mas nunca reproduzindo o cenário anterior.  Não
podemos reconstruir exatamente da maneira que era antes de o
problema vir. Mas a gente pode pensar em melhores técnicas, em não
ocupação de áreas de risco etc.
Há situações (como em Roca Sales e Muçum) que envolvem cidades
inteiras, e neste caso, é preciso repensar muito bem em como fazer isso
porque, por um lado, é complicado você retirar as pessoas que estão
naquela comunidade; por outro, não é possível expô-las novamente a um
risco desses.
Cidades como Muçum e Roca Sales estavam acostumadas com eventos
de enchente, só que aquela enchente que sobe e desce. E normalmente,
ela tinha grande energia na calha do rio, mas na planície ela só subia e
descia. Já as duas enchentes que nós tivemos em setembro e novembro,

e agora de novo, foram com grande energia na várzea, e foi levando
tudo, até estradas, prédios, o que nunca tinha acontecido antes”.

Fonte: Vermelho

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