Legado dos governos Temer e Bolsonaro dificulta o combate à fome

Na visão de José Graziano, um dos idealizadores do Fome Zero e ex-
diretor da FAO, a crise deixou de ser um problema típico de
determinados municípios, especialmente no Nordeste, convertendo-se

em “fome generalizada”

Luiz Inácio Lula da Silva já teve êxito, uma vez, na tentativa de erradicar
a fome no Brasil. “Transformemos o combate à fome em uma grande
causa nacional, como a criação da Petrobras”, declarou Lula em 1º de
janeiro de 2003, ao tomar posse pela primeira vez na Presidência da
República. “Essa é uma causa que pode e deve ser de todos. Deve ser
um instrumento para defender o que é mais sagrado – a dignidade
humana.”
Na visão do presidente, sua “missão de vida” era garantir que “todos os
brasileiros” tivessem “a possibilidade de tomar café da manhã, almoçar e
jantar”. De fato, políticas públicas de seus dois primeiros governos (2003-
2010), especialmente o programa Fome Zero, abriram caminho para que,
em 2014, a FAO (Organização das Nações Unidas para a para a
Alimentação e Agricultura) retirasse o País do Mapa da Fome.
Vinte anos depois, em outra posse no Planalto, Lula voltou a falar do
mesmo tema – e com igual contundência. “A volta da fome é um crime, o
mais grave de todos, cometido contra o povo brasileiro. A fome é filha de
desigualdade, mãe dos grandes males que atrasam o desenvolvimento
do Brasil”, disse Lula em 1º de janeiro de 2023. “Reassumo o
compromisso de cuidar de todos os brasileiros e brasileiras, sobretudo
aqueles que mais necessitam, e acabar outra vez com a fome neste
país”
O terceiro governo Lula já revigorou o Bolsa Família, recriou o Conselho
Nacional de Segurança Alimentar (Consea), ampliou em quase 40% os
repasses Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), relançou o
Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e instituiu o Brasil sem
Fome. Mas o presidente, desde o início do atual mandato, enfatiza que o
legado dos governos ultraliberais de Michel Temer (MDB) e Jair
Bolsonaro (PL) dificulta sua “missão de vida”.
“Ter de repetir este compromisso no dia de hoje – diante do avanço da
miséria e do regresso da fome, que havíamos superado – é o mais grave
sintoma da devastação que se impôs ao país nos anos recentes”,
afirmou Lula. O drama da fome, mais do que avançar, atingiu patamares
sem precedentes no País.
Conforme o relatório global “Estado da Segurança Alimentar e Nutrição
no Mundo”, divulgado por cinco agências da ONU, 70,3 milhões de
brasileiros vive em condições de insegurança alimentar severa ou
moderada. O número equivale a um terço da população.
Não é só isso. Na visão de José Graziano, um dos idealizadores do
Fome Zero e ex-diretor da FAO (2012-2019), a crise deixou de ser um
problema típico de determinados municípios, especialmente no Nordeste,

convertendo-se em “fome generalizada”. Por isso, as iniciativas do
governo precisam ser ajustadas à nova realidade.
“Com certeza, a situação na época do Fome Zero, 20 anos atrás, não é a
de hoje. Naquela época, a fome estava concentrada na zona rural, nos
pequenos municípios, de até 50 mil habitantes”, disse Graziano ao site
do Globo Rural. “Hoje, ela está nas grandes cidades, nas regiões
metropolitanas, na população de rua. Esse é o núcleo duro da fome
atualmente.”
De acordo com o especialista, o repasse de dinheiro para os brasileiros
se alimentarem – estratégia do Fome Zero – tornou-se insuficiente.
“Quando, na época, você dava R$ 50 para a dona de casa, ela comprava
R$ 50 de alimentos. Hoje, se você dá o valor do Bolsa Família, que às
vezes pode chegar a até R$ 1 mil, essa pessoa tem que pagar aluguel,
tem que comprar gás, pagar transporte e o material da escola dos filhos.”
É o que diferencia a população “metropolitana” da população rural “ou de
uma pequena cidade do interior”. Combater a fome, em 2023, é saber
identificar cada realidade. “Antes, estávamos falando do interior do
Nordeste, do semiárido da região. Eram os locais em que tínhamos mais
dificuldade de promover a produção e aumentar a oferta de alimentos”,
lembra Graziano.
“Hoje, a fome se espraiou”, agrega. “A Amazônia passou na frente do
Nordeste, com 40% da população em insegurança alimentar. No
Nordeste, são 35%. Mesmo os estados do Sul, por exemplo, que tinham
uma proporção muito baixa de gente passando fome, hoje têm uma
proporção que chega a mais de 15%.” Apesar dos percentuais menores,
“o volume de gente, a quantidade de pessoas, é muito maior nas regiões
metropolitanas”.
Sem citar ex-presidentes nominalmente, Graziano sustenta que a
negligência com questões socioeconômicas está por trás do recorde
negativo do Brasil. “O que tirou o Brasil do Mapa da Fome foi a geração
de emprego e o aumento do salário mínimo”, analisa. “Tivemos, durante
os dez primeiros anos da década de 2010, até 2011, 2012, um programa
de valorização do salário mínimo. O salário mínimo subiu acima da
inflação, e depois disso, no fim do governo Dilma e nos seguintes, isso
deixou de acontecer.”
Trabalhador mal alimentado tende a apresentar queda na produtividade
do trabalho das pessoas mal alimentadas, apontam diversos estudos.
“Em geral, as estimativas mostram que os países perdem de 5% a 8% do
seu produto interno bruto com a fome, seja em virtude do aumento dos
custos com saúde, seja por causa da queda de produtividade. Imagine

uma perda de 4% a 5% por ano. Se não houvesse a fome, daria para
crescer de 6% a 6,5%, e não 2% ou 2,5%, como a gente fica discutindo”.
Graziano indica que, para o Brasil sair novamente do Mapa da Fome, é
necessário que a insegurança alimentar atinja menos de 5% da
população. Ainda assim, o contingente seria de pouco mais de 10
milhões de pessoas. “Mas é possível, sim”, garante o ex-diretor da FAO.
“Encontrar os famintos é uma coisa difícil, mas é possível – e uma
sociedade pode estar atenta a isso. Estamos numa situação muito
favorável hoje para erradicar a fome, que é uma situação em que o
mundo produz mais do que o suficiente para alimentar todos de maneira
adequada.”
Fonte: Vermelho

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