Lula quer pacto com prefeitos e governadores para enfrentar a fome

Segundo a ex-ministra Márcia Lopes, segurança alimentar terá garantia
imediata com a reativação de políticas públicas coordenadas, a partir de

uma pactuação com governadores e prefeitos.

A assistente social Márcia Helena Carvalho Lopes acompanhou de um
lugar privilegiado a formação da complexa rede de garantias de
segurança alimentar no país, desde 2003 até se tornar ministra do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), em 2010. Por isso
mesmo, ela também assiste desolada o desmonte de toda a malha de
programas e articulações, assim como do pacto federativo em torno
dessas políticas públicas. Um processo que enxerga como um
“desabamento” de tudo que foi construído rumo ao mapa da fome em
que o Brasil se encontra. “O que é inadmissível num país que produz
tanto!”, afirmou em entrevista exclusiva ao Portal Vermelho.
No Brasil, 33 milhões de pessoas passam fome. Muitas crianças só têm
acesso a refeições na escola, e lá só têm bolacha e suco industrializado
para comer, ou precisam dividir um único ovo cozido entre si. Para que
elas não repitam o que nem chega a ser uma refeição, recebem um
carimbo na pele para evitar que alguém as alimente novamente. O
governo de Jair Bolsonaro decidiu praticamente zerar a verba de
programas alimentares no Orçamento de 2023, com cortes de até 97%
para programas como o Alimenta Brasil.
Márcia testemunhou com a posse do presidente Luis Inácio Lula da Silva,
em 2003, a estruturação de uma rede coordenada de políticas públicas
envolvendo 13 ministérios, que respondiam ao combate à fome. Agora,
ela vê a necessidade de colocar no combate à fome a centralidade, de
novo.
Quando o presidente Lula, em 2003, anunciou o Fome Zero, ele foi
tratado como mais um programa social, uma mera peça de marketing.
“Na verdade, era um pilar e eixo de articulação e integração entre as
políticas públicas. Com isso, se pretendia criar uma cadeia alimentar que
levasse a um processo de desenvolvimento econômico no Brasil”,
explicou a ex-ministra.
Havia um conjunto de programas nos diversos ministérios que
respondiam ao combate à fome. “Os resultado foram visíveis. Não era a
mera distribuição de prato de comida, mas um eixo estruturante de
diálogo com todo o ciclo de produção, abastecimento, comercialização e
acesso dos alimentos, que impacta no sistema econômico e social”,
afirma.
Primeira medida de governo
Márcia diz que Lula já anunciou que vai chamar todos os governadores e
prefeitos para estabelecer esta prioridade, e garantir não só a distribuição
de renda, mas articular a produção local, reabrir os restaurantes
populares e cozinhas comunitárias, com merenda de qualidade.

“Esse governo esculhambou com a relação com os prefeitos. Antes, o
acesso era direto com o Consea, agora, o prefeito precisa procurar um
deputado que tenha relação com o Ministério para marcar uma reunião”,
contou. Aparelhos de assistência social, como um CRAS, só funcionam
se a prefeitura ou estado garantirem isso, pois nã há mais relação nem
recurso do Governo Federal. “O pouco de dinheiro que entra é um cala-
boca para não infernizarem o governo”, disse.
Uma das medidas imediatas de um novo governo será a reativação do
Consea (Conselho Nacional e Segurança Alimentar). Foi através de sua
atuação que Márcia observou a redução de 60% da mortalidade infantil,
da desnutrição, a quadruplicação da permanência infantil na escola com
as condicionalidades exigidas pelo Bolsa Família.
Márcia ecoa a fala de Lula na campanha eleitoral, de que não tem
explicação científica e econômica para o terceiro maior produtor de
alimentos do mundo, o primeiro maior produtor de proteína animal não
ter comida para seu povo. Ele diz que a solução imediata para isso voltou
a ser sua obsessão.

As medidas apontadas por Lula para uma resposta emergencial, dizem
respeito a políticas de transferência de renda, articulação com a
agricultura familiar, valorização do salário mínimo e controle da inflação
por meio de estoques regulatórios. Mas o fortalecimento do SUAS
(Sistema Único de Assistência Social) também está no radar.
Debate inexistente
O debate mais amplo sobre o tema não existe, de acordo com a ex-
ministra. “A gente não vê o debate econômico direcionado ao combate à
fome em outras instâncias de governo, além da Assistência Social.
Bolsonaro não quer debater, só quer provocar e ofender”, lamentou.
Ela disse que, com Lula e Dilma, o tema da segurança alimentar e
nutricional fazia parte do debate no Ministério da Fazenda ou das
Relações Exteriores, por exemplo. O modo como, em plena pandemia, o
agronegócio priorizou as exportações em detrimento do abastecimento
nacional, é algo que não aconteceria do mesmo jeito em outro governo.
Em outros países, houve controle sobre o abastecimento interno de
insumos básicos, durante a pandemia. A falta de estoques reguladores
da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) agravaram este
quadro, favorecendo a alta inflação de alimentos e a dificuldade de
escoamento da produção de agricultores familiares.

Lula frequentemente denuncia os gargalos do Auxílio Brasil, que ignora
milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade sem assistência (29
milhões fora do programa). O novo recorte também não levou em conta o
número de crianças vivendo em cada lar. Sendo assim, uma residência
com um adulto recebe o mesmo valor que um lar onde moram várias
crianças com a mãe, por exemplo, num total de R$ 600.
Além disso, o Bolsa Família era universalizante, ou seja,
obrigatoriamente ia atender todos que coubessem nos critérios. O Auxílio
Brasil baseia o atendimento no tamanho do recurso. Nem todos que
estão no critério serão atendidos. “Manda o recurso e atende até onde
dá, parando ali. O resto da fila fica sem benefício”, explicou.
Segundo Márcia, todos esses programas mudam de nome no governo
Bolsonaro, mas não se efetivam. “Não tenho notícia de que o Alimenta
Brasil, que era o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), esteja
funcionando para alguém!”, afirmou a ex-ministra. “Você pode perguntar
para qualquer gestor público, inclusive da base de apoio ao Bolsonaro,
que ele vai dizer que não aconteceu nada, porque não tem acordo”, disse
ela.

Aliás, o Alimenta Brasil é um exemplo explícito de “copia e cola” mal feito
pelo programa de governo de Bolsonaro, com erros conceituais. Em vez
de compras da agricultura familiar, fala em compras de alimentos do
Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar),
que é um programa de crédito para agricultores. “É tudo para inglês ver”,
resume.
Desabamento
O “incompreensível desabamento” não foi gradual e lento. Com o golpe
do impeachment houve corte imediato de recursos e afastamento do
diálogo com prefeitos e governadores. “Para que uma política pública
funcione é preciso respeitar o pacto federativo e conversar com os
gestores, com a militância das políticas públicas e os usuários. Brasília
sozinha não consegue executar e coordenar tudo”, disse a ex-ministra.
Com os cortes de orçamento houve a paralisação da construção de
cisternas, dos restaurantes populares, das cozinhas comunitárias e do
PAA. As cisternas, por exemplo, fornecem água para consumo e para
produção alimentar em áreas rurais de seca.

Com a extinção do Bolsa Família, convertido a Auxílio Brasil, houve a
ruptura total com as prefeituras.
“Não apenas mapeávamos as populações vulneráveis de cada região,
mas também os produtores de alimentos, como pescadores,
quebradeiras de coco, pequenos produtores de leite”, relata Márcia,
contando que eram comprados 800 mil litros de leite por dia.
“Tudo isso foi desabando junto com mecanismos para garantir a
alimentação escolar de qualidade, o crédito ao agricultor familiar
(Pronaf). Veio a perda no valor do salário mínimo, o aumento da inflação
dos alimentos”, pontuou.
O SUAS (Sistema Único de Assistência Social) deve receber verba de
R$ 48,3 milhões em 2023, valor drasticamente menor do que os R$
967,73 milhões indicados na proposta inicial para 2022. Mesmo esse
montante tem sido insuficiente para o funcionamento dos centros de
assistência, segundo Márcia.

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