Precarização das relações de trabalho aumenta transtornos mentais

Nem sempre quem sofre de algum tipo de mal-estar psicológico o
associa ao ambiente de trabalho. Mas, essa relação é cada vez mais

comum e precisa ser enfrentada

O tema da saúde mental ganhou destaque em nível global nos últimos
anos, sobretudo devido aos reflexos da pandemia de Covid-19. Mas, há
muitos outros elementos que passaram a interferir no campo psicológico
e emocional da população. As mudanças radicais ocorridas no mundo do
trabalho, que tornaram o ambiente e as relações mais insalubres, e as
constantes crises do capitalismo também engrossam o caldo de forte
instabilidade e tensão que interfere diretamente no bem-estar psíquico
dos trabalhadores.
Pesquisa da Global Health Service Monitor, feita pela Ipsos em 34
países, mostrou que entre 2018 e 2022, a preocupação dos brasileiros
com a saúde mental quase triplicou, saindo de 18% naquele ano para
49% atualmente.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a
Organização Internacional do Trabalho (OIT), cerca de 15% dos
trabalhadores no mundo têm algum tipo de transtorno mental. As duas
entidades emitiram neste ano diretrizes e estratégias relativas à saúde
mental no trabalho e defenderam ações concretas em benefício dessa
população.
Um dos problemas que têm se tornado comum é a síndrome de Burnout,
doença mental ligada ao esgotamento profissional. Segundo o
International Stress Management Association (Isma), o Brasil é o
segundo país com mais casos deste tipo e de acordo com a Associação
Nacional de Medicina do Trabalho, a síndrome atinge mais de 30 milhões
de brasileiros.
“Como as pessoas passam grande parte de suas vidas no trabalho, um
ambiente seguro e saudável é fundamental. Precisamos investir para
construir uma cultura de prevenção em torno da saúde mental no
trabalho, remodelar o ambiente de trabalho para acabar com o estigma e
a exclusão social e garantir que os funcionários com problemas de saúde
mental se sintam protegidos e apoiados”, disse Guy Ryder, diretor-geral
da OIT.
No Brasil, mais de 200 mil pessoas foram afastadas de suas ocupações
por transtornos mentais somente em 2021, de acordo com dados do
Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Possivelmente, nem todos os
casos têm relação direta com  problemas gerados no ambiente laboral —
e vale destacar que há muita subnotificação e dificuldade para classificar
os transtornos por essa perspectiva. Porém, quem estuda o tema aponta
que fatores como pressão, instabilidade, concorrência, assédio, e
condições inadequadas para o exercício das funções — além, claro, dos

baixos salários — têm efeito extremamente deletério para boa parte dos
trabalhadores.

Capitalismo e transtorno mental
Se o problema da saúde mental e sua relação com o ambiente de
trabalho ganharam maior espaço no debate público mais recentemente,
é fato que há anos a questão vem sendo estudada por especialistas da
área. E o estágio atual do capitalismo, que traz a exacerbação da busca
pelo lucro, a pressão pela produtividade, a precarização das condições
de trabalho, a financeirização irrestrita, entre outros fatores, vem
destruindo o psicológico e o emocional da classe trabalhadora.
“A gente tem de pensar que há sempre uma história pessoal que vai
encontrar com a história do trabalho. O resultado disso não está definido
anteriormente. A questão é que principalmente a medicina — mas
também  outras áreas como psicologia, que têm de lidar com esses
casos — tende a enxergar só aquela pessoa à sua frente, o que é mais
simples porque esses profissionais muitas vezes não têm uma formação
para conseguir entender o resto”, explica Alvaro Roberto Crespo Merlo,
professor médico-docente do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, no
Serviço de Medicina Ocupacional/Ambulatório de Doenças do Trabalho,
que ele ajudou a criar em 1988.
Ele explica que o cenário atual “responde a uma transformação que a
organização e os processos de trabalho começaram a sofrer há mais ou
menos 15 anos, quando começou a haver a preponderância do capital
financeiro. Hoje, todos os processos produtivos estão submetidos a
grandes conglomerados e fundos financeiros, que não estão
absolutamente interessados no que se passa dentro do espaço de
trabalho”.
Merlo lembra que no Ambulatório de Doenças do Trabalho do Hospital de
Clínicas de Porto Alegre, essas transformações ficaram evidentes pelos
relatos dos pacientes. “É um mundo onde as pessoas são colocadas em
concorrência umas com as outras. As pessoas não têm mais um colega
de trabalho, elas têm um competidor ao lado delas”, diz.
Sintomas
Álvaro Merlo destaca que nesse contexto, quando as pessoas sofrem
algum tipo de assédio moral ou pressão para manter a produtividade,
elas se sentem sós porque não têm com quem compartilhar suas
angústias. “Qualquer expressão desse tipo pode ser vista pelo ‘colega’

como fraqueza, como alguém em quem ‘dá para passar a perna e se
livrar’. Isso vem acontecendo e isso não é visível. Só consegue enxergar
quem está dentro da área. E mesmo as pessoas que estão submetidas a
essas condições, muitas não conseguem perceber isso”, aponta.
Neste sentido, muitas vezes não é fácil estabelecer uma ligação entre o
sofrimento mental da pessoa e seu ambiente de trabalho. “Dificilmente,
quando alguém vai para uma consulta médica nessa área de saúde
mental consegue se dar conta do papel do trabalho. Ninguém vai se
consultar por causa do trabalho. As pessoas vão se consultar por causa
dos seus sintomas”.
Em geral, as principais manifestações apresentadas são tanto físicas
quanto emocionais: dores musculares, articulares e abdominais;
distúrbios no sono e no apetite; irritabilidade, angústia, ansiedade,
tristeza; dificuldades de concentração e de memória, entre outras.
Merlo explica ainda que há ainda muita incompreensão inclusive dentro
de casa.“É comum a família dizer: ‘Mas o que você vai fazer? Você vai
parar de trabalhar? Olha as pessoas do seu lado, elas estão
trabalhando’. A tendência é levar diretamente para uma situação
individual”, diz. E por não terem com quem falar, essas pessoas acabam
podendo desenvolver um transtorno depressivo e se fecharem. E em
casos mais graves, podem ocorrer ideações suicidas.
Conforme orientação contida em cartilha do Clínicas sobre o tema, no
atendimento, o que tem efeito terapêutico imediato é o usuário-
trabalhador saber que ele não está mais solitário nesta situação, além de
se salientar que os sintomas e o sofrimento dele podem ter relação com
o trabalho, o que pressupõe uma escuta compreensiva.
Além de ser fundamental que familiares e colegas estejam atentos a
sinais que podem indicar um mal-estar psicológico do indivíduo, do ponto
de vista mais amplo, é preciso dar mais visibilidade ao problema,
demonstrando que não se trata de algo isolado, mas cada vez mais
espalhado pela sociedade. “É preciso tornar essa discussão pública,
leva-la para a imprensa, sem necessariamente acusar essa ou aquela
empresa, mas tentar mostrar para as pessoas que tem uma quantidade
enorme de gente hoje num processo de sofrimento desse tipo,  vivendo
essa coisa de uma forma solitária e que a culpa não é daquela pessoa”.

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