Caso de trabalho escravo desnuda preconceitos alimentados pela extrema- direita

Entidade empresarial de Bento Gonçalves reclama de “assistencialismo”
e vereador bolsonarista de Caxias do Sul sugere que não se contrate

mais “aquela gente lá de cima”

Trabalhadores resgatados de trabalho análogo ao escravo no RS. Foto:
reprodução
A descoberta de que três grandes vinícolas da Serra Gaúcha (Aurora,
Salton e Garibaldi) contratavam trabalhadores em condições análogas à
escravidão desnudou uma gama de graves preconceitos presentes na
sociedade brasileira e que se fortaleceram com o bolsonarismo. Na

esteira da libertação de mais de 200 homens, vieram à tona
manifestações de entidade empresarial e de um vereador que
envergonham o país e mostram que a luta contra a fascistização do
Brasil está apenas no início.
Para começar, o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento
Gonçalves (CIG-BG), cidade do RS onde os trabalhadores viviam e
trabalhavam em condições subumanas, atribuiu ao pagamento de
benefícios pelo governo a escassez de mão de obra na região que teria
levado à contratação dos trabalhadores vindos, sobretudo, da Bahia —
como se isso justificasse o tratamento dado a essas pessoas.
Apresentando-se como entidade defensora do desenvolvimento
“sustentável, ético e responsável” dos negócios locais, o CIG-BG
procura, primeiramente, isentar seus representados de responsabilidade.
“É de entendimento comum que as vinícolas envolvidas no caso
desconheciam as práticas da empresa prestadora do serviço sob
investigação e jamais seriam coniventes com tal situação”, diz a nota.
Leia também:  “Vinho tinto de sangue”: o uso de mão de obra análoga à
escrava
Mais adiante, a entidade ataca as políticas de transferência de renda:
“Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e
que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um
sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”. E
continua:  “É tempo de trabalhar em projetos e iniciativas que permitam
suprir de forma adequada a carência de mão de obra”.
Na sequência, e como se não bastasse todo o drama vivido por aqueles
trabalhadores, o vereador bolsonarista de Caxias do Sul, Sandro Fantinel
(Patriota), em sessão nesta terça-feira (28), vociferou:  “Não contratem
mais aquela gente lá de cima”. E continuou em tom xenofóbico: “Com os
baianos, que a única cultura que têm é viver na praia tocando tambor,
era normal que fosse ter esse tipo de problema”.
Como solução para o que ele diz ser um problema, sugeriu a contratação
de argentinos: “Todos os agricultores que têm argentinos trabalhando
hoje só batem palma. São limpos, trabalhadores, corretos, cumprem o
horário, mantêm a casa limpa e no dia de ir embora ainda agradecem o
patrão pelo serviço prestado e pelo dinheiro que receberam”.
Sobre as condições dos alojamentos, o vereador disse: “Agora o patrão
vai ter que pagar empregada para fazer a limpeza todo dia para os
‘bonitos’ também? Temos que botar eles em hotel cinco estrelas para
não ter problema com o Ministério do Trabalho?”.

Apesar de haver registro em vídeo de sua fala, Fantinel disse que foi
“mal interpretado” e que fez uma fala “um pouquinho infeliz”.
Reações
Por outro lado, a situação dos trabalhadores libertados de condições de
similares à escravidão vem gerando uma série de consequências e
reações de rechaço. Pelo menos até que as investigações sejam
concluídas, a Apex (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e
Investimentos) decidiu suspender a participação das vinícolas Aurora,
Salton e Cooperativa Garibaldi em feiras, missões comerciais e eventos
promocionais.
O governador gaúcho Eduardo Leite (PSDB) disse que vai criar uma
força-tarefa para fiscalizar a contratação de pessoas e
combater situações de trabalho análogo à escravidão.
Por sua vez, o governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), rechaçou
a fala do vereador de Caxias do Sul e disse que tomará medidas: “É
desumano, vergonhoso e inadmissível ver que há brasileiros capazes de
defender a crueldade humana. Determinei, portanto, a adoção de
medidas cabíveis para que o vereador seja responsabilizado pela sua
fala”.
Em resposta, o Ministério Público decidiu abrir investigação civil e
criminal para apurar as declarações de Fantinel. Na Câmara de Caxias
do Sul, o ex-vice-prefeito Ricardo Fabris de Abreu, protocolou, na manhã
desta quarta-feira (1º), um pedido de cassação do vereador Sandro
Fantinel, o que também deverá ser feito pelas bancadas do PT, PDT e
PSD. Já o PSol anunciou que pedirá ao Ministério Público a prisão do
vereador.
A repercussão negativa da fala de Fantinel pesou até para o Patriotas,
partido de direita alinhado ao bolsonarismo. No dia seguinte à
manifestação, a legenda expulsou o vereador, argumentando que o
pronunciamento “está maculado por grave desrespeito a princípios e
direitos constitucionalmente assegurados, à dignidade humana, à
igualdade, ao decoro, à ordem, ao trabalho”.
A bancada negra de deputados estaduais do Rio Grande do Sul —
formada por Bruna Rodrigues (PCdoB), Laura Sitto (PT) e Matheus
Gomes (PSol) —protocolou a criação da Frente Parlamentar contra o
Trabalho Análogo à Escravidão e pelo Trabalho Digno.
A deputada federal Daiana Santos (PCdoB) também anunciou medida
para enfrentar esse tipo de exploração: “A gente não pode achar que isso
é normal, como se fosse mais uma notícia do dia. Aqui em Brasília, vou

garantir que a Câmara dos Deputados e das Deputadas tome
providências contra situação tão grave”.
Daiana protocolou requerimento que transforma uma sessão plenária em
comissão geral. “Ou seja, nós vamos parar a Câmara dos Deputados por
um dia para ouvir ministros, ministras, especialistas, toda a população
envolvida, enfim, toda a sociedade brasileira a fim de organizar políticas
públicas e fazer esta defesa para que não exista mais essa forma tão
cruel de exploração dos trabalhadores e trabalhadoras”, declarou.

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