A autonomia do Banco Central é compatível com a Constituição?

SENSO INCOMUM

Resumo: resta saber se o presidente do Banco Central é o superego da nação.
O tema  independência ou autonomia do Banco Central está na ordem do dia.
O novo governo faz fortes críticas à atuação do BC. Afinal, a taxa de juros no
Brasil é o dobro da inflação, desbordando do que ocorre com as demais taxas
do mundo (vide EUA e União Europeia).

Para além da economia, o que o Direito pode dizer? Gilberto Bercovici foi quem
melhor tratou do assunto no artigo Sobre o Banco Central Independente  [1] . O
artigo tem de ser lido. Por juristas, economistas, jornalistas e jornaleiros.
Bercovici reconstrói a história institucional do fenômeno. Mostra o fator
privatização dos bancos estaduais ocorrida na década de 90 como elemento
primordial da centralização da autoridade monetária no Banco Central. Diz
também que o problema desse processo de reestruturação da política

monetária foi o fato de que a recomposição da capacidade de intervenção
pública se esgotou na tentativa de controle sobre os gastos públicos. Fala
também da bizarrice que foi a equiparação da função de presidente do Banco
Central do Brasil à de ministro de Estado em 2004. Isso gerou uma certa
confusão institucional: um presidente de autarquia federal vinculada ao
Ministério da Fazenda (artigo 8º da  Lei 4.595/1964 ) se torna equiparável a
ministro de Estado, ou seja, com as mesmas prerrogativas de função daquele
que supostamente é seu superior hierárquico na administração pública, o
ministro da Fazenda.
Mas vinha coisa mais complexa pela frente: a tão falada autonomia do Banco
Central ( Lei Complementar 179 , de 24 de fevereiro de 2021). Pela nova
legislação, o presidente e a diretoria do Banco Central passam a ter mandatos
fixos e não coincidentes com o mandato do presidente da República, que perde
o poder de nomear e demitir os ocupantes dessas funções quando bem
entender.
Bercovici chama a essa entidade um "Frankenstein" na estrutura administrativa
brasileira: uma autarquia não subordinada ao presidente ou a nenhum ministro,
um órgão que paira no ar, sem vínculos, sem controles.
Esse é o busílis.
O Supremo Tribunal teve a chance de dar um fim nesse Frankenstein. Porém,
na Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 6.696, decidiu pela
constitucionalidade.
Passa um pequeno período de tempo e surgem fatos novos. Taxa de juros
estratosférica que coloca em polos opostos o novo presidente eleito e o
presidente do Banco Central.
O ponto que se põe é: qual seria o dispositivo constitucional que daria suporte
à lei que concede autonomia ao Banco Central? Ao argumento de que ele deve
ser autônomo para estabilizar a economia, cabe perguntar: a golpe de caneta
monetária o presidente do BC tem mais capacidade do que toda a equipe
econômica de um presidente da República? A Constituição estabelece quem
deve cuidar da economia. E nisso está inserida a estabilidade e a
responsabilidade social para com a população.
Examinando o texto constitucional, temos que ali estão determinadas
as normas para a consecução de políticas públicas que devem visar a erradicar
a pobreza e fazer justiça social (por exemplo, artigo 3º). Isso sem considerar o
próprio cerne daquilo que chamamos de "Constituição Econômica".
Parece que esquecemos que a nossa Constituição tem o claro perfil dirigente. A
CF/88 é compromissória e dirigente, filha das Constituições dirigentes do
segundo pós-guerra, mormente se pensarmos em países periféricos como o
Brasil.
Lembro que nos anos 90 cunhei a tese de uma CDAPP — Constituição Dirigente
Adequada para Países Periféricos, na esteira da já então criticada Constituição
Dirigente tratada pelo constitucionalista J J Gomes Canotilho.

Dizia eu, então, no que fui acompanhado por Gilberto Bercovici, Martonio
Barreto Lima e Marcelo Cattoni, que a nossa Constituição, a par das críticas ao
dirigismo original feito pelo próprio Canotilho, continuava dirigente  [2] . Mais: de
minha parte, a tese do dirigismo constitucional continua válida enquanto não
resolvermos o triângulo dialético propugnado pelo próprio Canotilho, inspirado
em Johan Galtung (falta de segurança, pobreza e falta de igualdade política). A
Constituição ainda vale. E nela nada consta sobre Banco Central independente
ou autônomo. Banco Central aparece oito vezes no texto da Constituição.
Nenhuma vez sequer se insinua a sua autonomia ou independência para além
do poder do presidente da República — basta ver que o regime continua sendo
o presidencialista.
Trata-se de analisar o papel do Estado na economia. E o do governo. Enquanto
não resolvermos esses problemas (pobreza, segurança e igualdade política),
ainda precisamos de forte atuação estatal para a consecução desses objetivos
constitucionais. Isto é, aqui no Brasil a Constituição que dirige não morreu. E
por isso precisamos de uma Constituição que diga o que fazer. Que resgate
compromissos. Que resgate as promessas modernas até hoje incumpridas. E a
nossa diz claramente como fazer isso. Quer queiramos, quer não queiramos. A
Constituição é um fato. Ou ela vale apenas quando se fala em imunidades e
isenções?
Não parece adequado à Constituição um organismo como o Banco Central
autônomo, cujo presidente, sem mandato popular, sem legitimidade, estabeleça
as diretrizes do desenvolvimento econômico. Porque, no fundo, é isso que
acontece. O Banco Central manda mais que o presidente.
O Brasil é uma República representativa. Presidencialista. Elege-se o presidente
para elaborar políticas públicas. Que devem ser compatíveis e obedecer a
Constituição. Ora, se o presidente do Banco Central resolver triplicar a taxa de
juros em relação ao índice inflacionário (duplicada já está) e isso gerar mais
pobreza, quer dizer que a atuação do presidente do Banco Central é
inconstitucional, porque a Constituição diz o contrário. Pior: a culpa e
responsabilidade serão debitadas na conta de quem foi eleito presidente. Da
República. E não do Banco Central. Sei que parece uma platitude dizer isso.
Mas por aqui há que se dizer o óbvio — que se esconde no anonimato.
Tem-se a impressão de que estamos no mundo de paroxismos. Ocorre uma
disputa quase fratricida nas eleições. Quase ocorreu um golpe. Elege-se o
presidente. E quando ele quer fazer cumprir, para o bem e para o mal, sua
plataforma de governo, o presidente do Banco Central atua como superego da
nação.
Resta saber se o Banco Central pode tanto a ponto de ser esse superego,
espécie de grilo falante do sistema político-econômico.
Numa palavra final, retomo Bercovici, para dizer que, para além de toda a
questão constitucional, o problema da "independência" do Banco Central é
menos jurídico e essencialmente político. A pergunta que deve ser feita é:
Banco Central independente de quem?

Ao que parece, o BC é independente do sistema político e de todo e qualquer
controle democrático — com o que se volta à questão constitucional.
Por último, alguém dirá que essa questão já está decidida pelo STF. Respondo,
dizendo: mas o STF não disse que o modelo anterior era inconstitucional.
Consequentemente, então, na pior das hipóteses, a Constituição admitiria mais
de uma possibilidade de configuração. Além disso, o fato de o STF dizer por
último não significa que esteja sempre certo. E decisões não são eternas.
Isto é, o presidente da República pode entender, e o Congresso também,
que esse modelo de "independência" do Banco Central criou um problema do
ponto de vista político e econômico.
Ou, ironicamente, a possibilidade de rever decisões que afetam estruturalmente
a vida das pessoas seria inconstitucional?
Por isso, diante do problema criado, cabe alterar o modelo de Banco Central.
Isso porque a alteração do modelo não é inconstitucional. Ao contrário, tornar-
se-ia adequado ao modelo constitucional compromissório e dirigente inscrito na
Constituição do Brasil.

[1]  In Revista Fórum de Direito Financeiro e Econômico. ano 11 – nº 21 |
mar./ago. 2022
[2]  Recomendo a leitura deste artigo que trata da Constituição Dirigente
Invertida, em que cito os três autores:  https://www.conjur.com.br/2016-out-
27/senso-incumom-rumo-norundi-bordo-cdi-constituicao-dirigente-invertida

Lenio Luiz Streck  é jurista, professor, doutor em Direito, autor de Hermenêutica
Jurídica E(m) Crise e Verdade e Consenso.

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